ENTRE REDES METÁLICAS E HUMANAS – O NOBEL DE QUÍMICA 2025 CELEBRA CIÊNCIA E RESILIÊNCIA.

No dia 8 de outubro de 2025, foi anunciado que o Prêmio Nobel de Química foi concedido a cientistas que revolucionaram a forma como manipulamos a matéria em escala molecular. Os laureados desenvolveram a síntese de estruturas metalorgânicas porosas (metal-organic frameworks, MOFs), complexas construções moleculares dotadas de amplos espaços internos que permitem a passagem e o aprisionamento seletivo de diversos componentes, uma de suas inúmeras aplicações potenciais.
As estruturas desenvolvidas são formadas por cadeias carbônicas com conformação espacial tridimensional, sustentadas por “pilares” de íons metálicos. Trata-se de cristais com grandes volumes internos em relação à área superficial externa. Essa conformação espacial, somada à alta estabilidade e à possibilidade de ajustar a estrutura para diferentes finalidades, representa um avanço notável na síntese tridimensional de materiais, plenamente digno de reconhecimento científico e premiação.


O marco histórico da pesquisa ocorreu em 1989, quando Richard Robson desenvolveu uma estrutura cristalina bem ordenada, caracterizada por amplos espaços internos e íons de cobre carregados positivamente. Naquele momento, porém, o material ainda apresentava instabilidade e colapsava facilmente. Em 1992, Susumu Kitagawa demonstrou que gases poderiam fluir através dessas estruturas e previu que os MOFs poderiam apresentar flexibilidade estrutural. Já em 2003, Omar Yaghi criou o primeiro MOF altamente estável e introduziu a possibilidade de modificar racionalmente as estruturas com o objetivo de desenvolver novas propriedades desejáveis. Com base nas contribuições desses três cientistas, milhares de novas estruturas de MOFs foram sintetizadas desde então, abrangendo uma ampla gama de propriedades e aplicações.


De acordo com a definição original, “um metal-organic framework (estrutura metal-orgânica), abreviado como MOF, é uma rede de coordenação com ligantes orgânicos que contém cavidades potenciais” [1]. Dentro desse sistema de classificação, os MOFs constituem um subconjunto das redes de coordenação, que, por sua vez, pertencem ao grupo mais amplo dos polímeros de coordenação.

Kitagawa introduziu o conceito das três “gerações” de frameworks, descritas da seguinte forma: primeira geração (estruturas porosas instáveis após a remoção das moléculas hóspedes, inclusões); segunda geração (frameworks estáveis, capazes de liberar e readsorver reversivelmente espécies hóspedes, mantendo sua fase e morfologia; terceira geração (frameworks dinâmicos, capazes de alterar sua morfologia em resposta a estímulos externos, como pressão, temperatura ou luz).


Posteriormente, Kitagawa expandiu essa classificação ao introduzir o termo “cristais porosos suaves” (soft porous crystals) para designar os frameworks de terceira geração. Diversas estruturas foram rapidamente identificadas como pertencentes a essa categoria dinâmica. Um exemplo notável é a estrutura do tipo “tongue-and-groove”, inicialmente empregada para demonstrar a adsorção de gases, e posteriormente reconhecida como integrante da terceira geração.


Com o objetivo de conceituar de forma mais clara o processo de design e construção desses frameworks, Omar M. Yaghi buscou estabelecer uma terminologia mais precisa para o campo, consolidando o uso do termo Metal-Organic Framework (MOF). A definição atualmente recomendada pela IUPAC descreve um MOF como “uma rede de coordenação com ligantes orgânicos contendo vazios potenciais”. No contexto dessa classificação, os MOFs são um subconjunto das redes de coordenação, que, por sua vez, integram o grupo dos polímeros de coordenação.


Inicialmente, Yaghi empregou o conceito de “química modular” para descrever o processo de construção dos frameworks, enfatizando o uso da “unidade de construção secundária” (Secondary Building Unit – SBU), conceito previamente aplicado no campo das zeólitas, como bloco fundamental das estruturas. Entre 2002 e 2003, Yaghi introduziu o termo “síntese reticular” (reticular chemistry), definindo-o como “o processo de montagem de blocos de construção moleculares rígidos, projetados de forma racional, em estruturas ordenadas e predeterminadas (redes), mantidas por ligações fortes” [1]. Essa abordagem conceitual mostrou-se mais precisa do que o termo genérico “engenharia de cristais”.


Inspirando-se no trabalho de Alexander F. Wells, que tratava as topologias de estruturas periódicas como redes formadas por vértices (nós correspondentes a átomos) e arestas (ligações representando as conexões), Yaghi expandiu a química reticular com o conceito de “isoreticularidade”. As estruturas isoreticulares constituem famílias de frameworks que compartilham o mesmo nó e topologia subjacentes. Ao empregar a mesma SBU, mas variando o ligante orgânico, tornou-se possível criar séries de frameworks que preservam a estrutura de rede, mas permitem personalizar o tamanho das cavidades e as funcionalidades químicas dos ligantes. Essas estruturas apresentam extraordinário potencial para aplicações tecnológicas, entre as quais se destacam: captura de dióxido de carbono; armazenamento de gases tóxicos; adsorção de contaminantes em efluentes industriais; catálise de reações químicas específicas; adsorção de umidade do ar em regiões áridas, sendo esta a aplicação mais popularizada.


Uma das aplicações mais cruciais dos materiais porosos reside em sua capacidade de atuar como reservatórios e adsorventes de pequenas moléculas hóspedes, como gases. Essa funcionalidade já era amplamente explorada em materiais tradicionais, como zeólitas e carvão ativado, empregados largamente na indústria química. Nos frameworks de polímeros de coordenação, a adsorção de gases foi rapidamente demonstrada. Para evitar a ruptura das estruturas durante os processos de adsorção e dessorção, ou o bloqueio inadequado das cavidades, os cientistas passaram a buscar frameworks neutros e desprovidos de contra-íons aniônicos livres. Uma estratégia eficaz foi o uso de ligantes orgânicos aniônicos, como ácidos carboxílicos, ou a incorporação dos próprios contra-íons como ligantes de coordenação metálica.


Além da adsorção de gases, as áreas de aplicação dos MOFs incluem: química analítica e desenvolvimento de sensores; armazenamento e conversão de energia (baterias e células a combustível); ciência da separação; síntese e catálise; remediação ambiental e purificação de água, com destaque para o MOF-303, aplicado na captação de humidade do ar; o UiO-67, utilizado na adsorção de compostos PFAS da água; e o ZIF-8, avaliado para a recuperação de metais de terras raras em águas residuais.


O campo também abrange a captura e destruição de agentes nocivos, além de aplicações em biomedicina (como liberação controlada de fármacos, diagnóstico e terapia), geração de hidrogênio, segurança alimentar, entre outras possibilidades emergentes.


A indústria tem desempenhado papel fundamental na pesquisa, desenvolvimento e expansão das aplicações dos frameworks. Estudos demonstram que esses materiais podem ser produzidos em larga escala, de forma econômica e sustentável, mantendo elevada estabilidade química e térmica. A integração de MOFs com outros materiais, originando estruturas compósitas, tem aberto novos caminhos para aprimorar o desempenho funcional e impulsionar o desenvolvimento de tecnologias inovadoras em múltiplos setores industriais e científicos.


Omar Yaghi – Filho de Refugiados Palestinos
Omar Yaghi nasceu em 1965, na cidade de Amã, na Jordânia, sendo o sexto filho de uma família de refugiados palestinos. Seus pais foram forçados a deixar a Palestina após a guerra de 1948, o conflito árabe-israelense que se intensificou com a declaração de independência de Israel, aprovada pela ONU, período em que centenas de milhares de palestinos foram deslocados de suas terras.


Yaghi cresceu em condições extremamente desfavoráveis. Ele mesmo relata em entrevistas que, durante a infância, vivia com os pais, irmãos e até o gado em um único cômodo, sem eletricidade nem água encanada. Sua educação formal começou tarde, consequência direta das dificuldades materiais e sociais que o cercavam. Ainda assim, movido por curiosidade e determinação, aos 15 anos mudou-se para os Estados Unidos em busca de melhores oportunidades de estudo, um passo que mudaria sua vida e, mais tarde, o próprio rumo da ciência.


Mas por que essa história importa para a ciência, para os refugiados, para todos nós?
A trajetória de Yaghi é uma prova viva de que o talento científico não é privilégio de quem nasce em centros acadêmicos ou países ricos. Mentes brilhantes existem em todos os lugares, inclusive nos contextos mais desfavorecidos. Seu reconhecimento pelo Prêmio Nobel é um testemunho poderoso de que a origem não define o destino e, muitas vezes, é a superação diante da adversidade que revela o verdadeiro potencial humano. É o reconhecimento de mundos e vozes historicamente marginalizados.
Para milhões de refugiados e descendentes de comunidades deslocadas, ver alguém com uma história semelhante alcançar o mais alto reconhecimento científico mundial é um ato de esperança e representatividade. Demonstra que é possível vencer, que a educação, o sacrifício e o apoio podem transformar destinos. Pessoas que crescem em contextos de crise frequentemente se sentem invisíveis; conquistas como a de Yaghi lhes devolvem visibilidade e pertencimento.


Seu trabalho, além disso, não é abstrato nem distante da realidade humana. As estruturas metalorgânicas (MOFs) que ele desenvolveu têm impacto direto em desafios contemporâneos, como escassez de água, poluição e mudanças climáticas, justamente problemas que atingem de forma mais severa as populações vulneráveis e deslocadas. Assim, sua obra vai muito além da glória pessoal: é ciência aplicada às urgências humanas, ciência que transforma vidas.


O próprio Yaghi enfatiza a importância das instituições públicas de ensino e pesquisa, especialmente nos Estados Unidos, que lhe ofereceram as oportunidades que transformaram sua trajetória. Sua história é um lembrete eloquente de que políticas educacionais inclusivas, bolsas de estudo e infraestrutura científica sólida são essenciais para que o mérito floresça, independentemente do ponto de partida social ou geográfico. É a afirmação concreta do valor da igualdade de oportunidades.


Ao olhar para sua infância, marcada pela privação, pela falta de recursos, pelas perdas humanas, e compará-la à consagração no topo do reconhecimento mundial, vemos um desafio direto às narrativas de desespero. A vida de Yaghi demonstra que mesmo nas condições mais árduas existem humanidade, engenho, curiosidade e vontade de aprender, qualidades que merecem ser nutridas e respeitadas. Yaghi é hoje um símbolo de resiliência e dignidade humana.


O fato de um filho de refugiados palestinos ter recebido o Nobel de Química transcende a dimensão científica: é uma vitória moral e humana. É um desafio às circunstâncias que pretendem limitar vidas e uma lembrança universal de que o conhecimento, a curiosidade e a paixão pelo saber podem atravessar barreiras que muitos julgariam intransponíveis.


Ao conquistar esse prêmio, Omar M. Yaghi não apenas amplia os horizontes da química moderna, mas também transmite uma mensagem profunda de dignidade, esperança e inclusão. Sua trajetória é um convite para que o mundo reconheça que a ciência pertence a todos, e um estímulo permanente para todos os jovens que nascem em meio à adversidade, mas se recusam a deixar de sonhar alto.


Prof. Anderson Dantas de Souza Docente de Indústria Química e Petroquímica do Instituto Federal de Sergipe Conselheiro Suplente do CRQ VIII Região/SE